domingo, 9 de fevereiro de 2014

Assistir um livro

O cinema e a literatura são duas artes que caminham juntas. Tirando o fato de que, via de regra, a composição de um filme é precedido de um roteiro escrito que se assemelha muito à literatura tradicional, muitas vezes somos apresentados apenas pelo cinema a boas obras literárias que, por preguiça, falta de acesso ou tempo, jamais conheceríamos.

Entretanto, por serem mídias totalmente distintas, não é nada razoável esperar que ambas surtam o mesmo efeito e sejam exatamente iguais em sua apresentação. A linguagem de um livro é desacelerada, descritiva, feita para que o leitor crie em seu cérebro a projeção dos personagens e lugares, o que ocorre de forma distinta por cada um dos leitores. No filme adaptado da obra literária, o que vemos é a interpretação dos seus realizadores e dificilmente a linguagem narrativa permite que o livro seja passado ao pé da letra para a tela. Isso poderia deixar tudo muito monótono e prolongado.

Assim, o recurso muitas vezes utilizado para transpor do papel para as telas é a supressão de personagens e até mesmo a mescla de diversos deles em apenas um. Muitos puristas reclamam, por exemplo, que Peter Jackson ignorou a figura de Tom Bombadil em O Senhor dos Anéis (o que não fez com que a obra perdesse o status de ser uma das obras cinematográficas mais bem adaptadas da história). O mesmo Peter Jackson que, seguindo uma linha inversa em O Hobbit, acabou acrescentando diversos personagens que constavam em outros de seus livros, chegando mesmo a criar personagens que poderiam fazer Tolkien revirar no túmulo. O recurso foi necessário para que a máquina de Caça Níqueis engordasse os cofres da New Line Cinema, pois o livro O Hobbit, na prática, não possui conteúdo para mais de nove horas de projeção. Ora, basta utilizarmos de matemática simples: se cada página de um roteiro padrão de cinema representa um minuto de projeção em tela, o roteiro da trilogia O Hobbit teria mais de novecentas páginas, correto? Bem, o livro ao qual é baseada a trilogia possui cerca de apenas trezentas páginas, o que por si só já apresenta o exagero de Peter Jackson.

Recentemente, iniciou-se na TV a cabo a série Sob a Redoma, de Stephen King. Baseada no livro homônimo de quase mil páginas e mais de duas dezenas de personagens importantes, a obra merecia ser transformada em uma série. Aliás, ela já nasceu para isso, tendo em vista a forma como King conduz a maioria de suas narrativas (de forma cinematográfica e visual). Entretanto, como quem manda no mundo das artes infelizmente é o dinheiro na maioria das vezes, Stephen King, notando o potencial de audiência alcançado já nos primeiros episódios, permitiu que a história fosse modificada e prolongada ao extremo em benefício da mídia audiovisual. Assim, mantiveram o pano de fundo e… bem, como o próprio autor alegou, quem estiver insatisfeito com o que estiver vendo na TV, recorra ao livro que sempre estará incólume na prateleira. O mesmo Stephen King que, anos atrás, tanto reclamou das alterações que o diretor Stanley Kubrick realizou em outro de seus sucessos, O Iluminado. E até hoje reclama, diga-se de passagem.

Mas ainda vale citar aqui outras excelentes adaptações das obras de King, que mantiveram os elementos do livro, sem necessidades de grandes alterações, como Conta Comigo, À Espera de um Milagre e Um Sonho de Liberdade. E uma delas que, justamente por sua alteração, superou o resultado do livro, como vimos em O Nevoeiro.

Outro bom exemplo que nos mostra como a mídia audiovisual tem que ser distinta da literária reside no filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo, que retrata as últimas doze horas da vida de Jesus. A história é narrada por diversos livros da bíblia, mas coube a Gibson nos mostrar o que a bíblia apenas apresenta em suas entrelinhas, entre um versículo e outro. Nesse caso, ver foi mais impactante que ler. não nos damos conta da violência daqueles atos narrados nas páginas até que visualizamos o festival de horror ao qual o personagem central foi submetido. Aí nos damos conta de que as coisas poderiam ter realmente sido daquela forma, embora não esteja escrito assim.

Um mal exemplo que tristemente tem que ser citado foi com a obra de Érico Veríssimo, o Tempo e o Vento. Era preferível que ela tivesse ficado nas prateleiras a ter sido adaptada em apenas um filme de longa duração. A complexidade daqueles personagens e daquelas histórias épicas mereciam a megalomania de Peter Jackson, mas chega a ser injusto exigir isso de Jayme Monjardim, a não ser que ele resolvesse transformá-la em um seriado de média duração (o que, pelo que conheço do diretor, não melhoraria muito a qualidade da projeção).

Assim, o que as adaptações vêm nos dizer é que as obras merecem ser lidas, assim como os filmes merecem ser assistidos. O senso crítico é desenvolvido a partir de você, de sua experiência pessoal, não do que os outros dizem. Gostou do filme? Vá lá e leia o livro. Gostou do livro? Assista ao filme para ver o que alguém que também gostou imprimiu para a tela. Afinal, independente do estrago realizado, Stephen King está corretíssimo quando diz que a obra sempre estará aguardando ansiosamente na prateleira para ser lida, sem que alguém a tenha mudado, a não ser a imaginação de quem a está lendo.
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